domingo, 14 de março de 2010

Da chegada do amor


Sempre quis um amor
que falasse
que soubesse o que sentisse.

Sempre quis uma amor que elaborasse
Que quando dormisse
ressonasse confiança
no sopro do sono
e trouxesse beijo
no clarão da amanhecice.

Sempre quis um amor
que coubesse no que me disse.

Sempre quis uma meninice
entre menino e senhor
uma cachorrice
onde tanto pudesse a sem-vergonhice
do macho
quanto a sabedoria do sabedor.

Sempre quis um amor cujo
BOM DIA!
morasse na eternidade de encadear os tempos:
passado presente futuro
coisa da mesma embocadura
sabor da mesma golada.

Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse.

Sempre quis um amor
que não se incomodasse
quando a poesia da cama me levasse.

Sempre quis uma amor
que não se chateasse
diante das diferenças.

Agora, diante da encomenda
metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo.

Contudo
sempre quis um amor
que me coubesse futuro
e me alternasse em menina e adulto
que ora eu fosse o fácil, o sério
e ora um doce mistério
que ora eu fosse medo-asneira
e ora eu fosse brincadeira
ultra-sonografia do furor,
sempre quis um amor
que sem tensa-corrida-de ocorresse.

Sempre quis um amor
que acontecesse
sem esforço
sem medo da inspiração
por ele acabar.

Sempre quis um amor
de abafar,
(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos.

Sem senãos.

Sempre quis um amor
com definição de quero
sem o lero-lero da falsa sedução.

Eu sempre disse não
à constituição dos séculos
que diz que o "garantido" amor
é a sua negação.

Sempre quis um amor
que gozasse
e que pouco antes
de chegar a esse céu
se anunciasse.

Sempre quis um amor
que vivesse a felicidade
sem reclamar dela ou disso.

Sempre quis um amor não omisso
e que suas estórias me contasse.

Ah, eu sempre quis uma amor que amasse.


Elisa Lucinda
Poesia extraída do livro "Euteamo e suas estréias", Editora Record - Rio de Janeiro, 1999,

INTIMIDADE


Houve um tempo, crianças, em que a gente não falava de sexo como quem fala de um pedaço de torta. Ninguém dizia Fulano comeu Beltrana, assim, com essa vulgaridade. Nada disso. Fulano tinha dormido com ela. Era este o verbo. O que os dois tinham feito antes de dormir, ou ao acordar, ficava subentendido. A informação era esta, dormiram juntos, ponto. Mesmo que eles não tivessem pregado o olho nem por um instante.

Lembrei desta expressão ao assistir Encontros e Desencontros. No filme, Bill Murray e Scarlett Johansson fazem o papel de dois americanos que hospedam-se no mesmo hotel em Tóquio e têm em comum a insônia e o estranhamento: estão perdidos no fuso horário, na cultura, no idioma, e precisando com urgência encontrar a si mesmos. Cruzam-se no bar. Gostam-se. Ajudam-se. E acabam dormindo juntos. Dormindo mesmo. Zzzzzzzzzzz.

A cena mostra ambos deitados na mesma cama, vestidos, conversando, quando começam a apagar lentamente, vencidos pelo cansaço. Antes de sucumbir ao mundo dos sonhos, ele ainda tem o impulso de tocar nela, que está ao seu lado, em posição fetal. Pousa, então, a mão no pé dela, que está descalço. E assim ficam os dois, de olhos fechados, capturados pelo sono, numa intimidade raramente mostrada no cinema.

Hoje, se você perguntar para qualquer pré-adolescente o que significa se divertir, ele dirá que é beijar muito. Fazer campeonato de quem pega mais. Beijar quatro, sete, treze. Quebram o próprio recorde e voltam pra casa sentindo um vazio estúpido, porque continuam sem a menor ideia do que seja um encontro de verdade, reconhecer-se em outra pessoa, amar alguém instintivamente, sem planejamento. Estão todos perdidos em Tóquio.

Intimidade é coisa rara e prescinde de instruções. As revistas podem até fazer testes do tipo: “descubra se vocês são íntimos, marque um xis na resposta certa”, mas nem perca seu tempo, a intimidade não se presta a fórmulas, não está relacionada a tempo de convívio, é muito mais uma comunhão instantânea e inexplicável. Intimidade é você se sentir tão à vontade com outra pessoa como se estivesse sozinho. É não precisar contemporizar, atuar, seduzir. É conseguir ir pra cama sem escovar os dentes, é esquecer de fechar as janelas, é compartilhar com alguém um estado de inconsciência. Dormir juntos é muito mais íntimo que sexo.

Martha Medeiros
Imagem: omundopenelopecharmosa.blogger.com.br/2006_01_01_archive.html

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Durante muito tempo acreditei que o que me fazia amar um homem era a inteligência. Ficava enfeitiçada com citações, elucubrações e teses. Mas não era. De nada adianta um perito em física nuclear, se ele não rir das pequenas besteiras que faz, se não souber aproveitar um sábado quente simplesmente não fazendo nada (e curtindo o ócio), se virar um psicopata quando alguém o fecha no trânsito. Então saquei: bom humor era o que mais me atraía.

Sempre achei delicioso estar com alguém que não vê o mundo como uma grande e monstruosa boca cheia de dentes prestes a mastigá-lo, que vive sem arrastar correntes, faz de tudo uma possível piada. Só que nem tudo é uma piada e, em certas horas, tudo o que quero é alguém que me escute e diga algo que me conforte a alma. E, nesses momentos, o pior que pode acontecer é ser levada na piada - existe uma grande diferença entre alegria de viver e recusa a sair da infância. Pois é, não era bom humor o que me fazia amar alguém: era, antes, sensibilidade.

Telefonemas de bom-dia, atenção a informações aparentemente banais mas que dizem muito a meu respeito, não ficar azedo e arredio por causa das minhas pequenas (ou grandes) oscilações de humor - tudo o que eu podia querer. Quase tudo. Tenho personalidade forte e só sobrevive ao meu lado um homem que grite comigo quando eu passar dos limites do bom senso, demonstre desagrado quando eu exigir demais e oferecer de menos. Preciso ser cuidada, mas tenho que sentir que quem está comigo é um homem de verdade e não um principezinho criado pela avó. Quero ser domada, tomada. Mais uma vez minha certeza caiu por terra: nem inteligência, bom humor ou sensibilidade eram o que me fazia amar alguém. Era - isso, sim - virilidade.

Mal abrir a porta da sala e ser consumida por beijos. Ter a roupa arrancada no caminho da cozinha, ser jogada na mesa de jantar sem tempo pra pensar no que está acontecendo, só sentir e saber o tesão incontido daquele homem por mim. Ser desejada com urgência e paixão é um dos maiores elogios que uma mulher pode receber, mas só ser desejada de nada adianta, pelo menos não depois da décima trepada monumental: quando acaba o suadouro, o que resta? Se pouco importa o saldo, o que interessa mesmo é a movimentação, então estamos feitos. Mas, se existe a possibilidade de ser esmagada pelo vazio de sentido após o orgasmo, de nada vale. Pelo menos se não vier acompanhada de carinho. Taí: pensei, então, que carinho era a pedra fundamental pra despertar meu amor.

Mas logo descobri que não era. Carinho é um sentimento abrangente demais: nos invade desde a visão de um cachorro abandonado até a palavra confortadora para alguém que pouco nos importa mas a quem também não queremos mal. Não bastava, era muito pouco. Daí constatei que o essencial para que eu amasse alguém era notar no outro a vontade de ficar, o desejo de estar comigo. Constatei coisas demais e fiquei paralisada diante do ideal que havia criado: absurdo e fictício.

Hoje sei que toda enumeração é uma estupidez e qualquer tipo de formulário emocional, uma passagem sem escalas pra frustração. Claro que gosto de homens cultos, atenciosos, interessantes, divertidos e viris - seria mentira negar. Mas a verdade é que, para que eu ame alguém, basta que eu ame alguém. Porque, quando se precisa justificar o amor, é porque ele não existe. Simples assim.

Ailin Aleixo

QUEM MORRE?


Morre lentamente
Quem não viaja,
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem não encontra graça em si mesmo

Morre lentamente
Quem destrói seu amor próprio,
Quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente
Quem se transforma em escravo do hábito
Repetindo todos os dias os mesmos trajeto,
Quem não muda de marca,
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou
Não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente
Quem evita uma paixão e seu redemoinho de emoções, Justamente as que resgatam o brilho dos
Olhos e os corações aos tropeços.

Morre lentamente
Quem não vira a mesa quando está infeliz
Com o seu trabalho, ou amor,
Quem não arrisca o certo pelo incerto
Para ir atrás de um sonho,
Quem não se permite, pelo menos uma vez na vida, Fugir dos conselhos sensatos...

Viva hoje !
Arrisque hoje !
Faça hoje !
Não se deixe morrer lentamente !

NÃO SE ESQUEÇA DE SER FELIZ

Martha Medeiros

Há um pouco de mim
na ternura esquecida
no sonho das almas
buscando distâncias.
Há um pouco de mim
no vazio da esperança
nos olhos que choram
antigas ausências.
Há um pouco de mim
na espera frustrada
nas horas que fogem
marcando destino.
Há um pouco de mim
no murmúrio das águas
escorrendo cantigas
minando promessas.
Há um pouco de mim
na carícia do vento
despedindo papoulas
queimando rosais.

Há muito de mim
na tristeza dos tristes...

Na angústia do Mundo
há muito de mim!

Lia Corrêa

Talvez hoje eu crie asas...e voe!
Muito mais do que altura,
quero sentir a liberdade!
Planarei sobre o oceano de emoções
que me habita e o universo que me assusta.
Verei as coisas por cima e abrirei os braços
para o espaço vazio que há em meu peito.
Darei rodopios e mergulharei de cabeça na felicidade.
Sob minhas asas, levarei todo o amor que nela couber
e me sentirei leve como pluma.
Ah, sim... hoje eu voarei!
E feliz da vida pousarei
no que há de mais belo dentro de mim:
a Vida!

Mell Glitter

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Hilda Hilst

" Dizer palavras sem sentido é a minha grande liberdade.
Pouco me importa ser entendida,
quero o impacto das silabas ofuscantes,
quero o nocivo de uma palavra má... eu sou de longe.
Muito longe. E de mim vem o puro cheiro de querosene."

Clarice Lispector
Imagem: img105.imageshack.us/i/moldurapm203xr9.jpg/

Eu quero lhe implorar para que seja paciente,
paciente com tudo o que não está resolvido em seu coração.
E tente amar as perguntas como quartos trancados
e como livros escritos em língua estrangeira.
Não procure respostas que não podem ser dadas,
porque não seria capaz de vivê-las.
E a questão é viver tudo.
Viva as perguntas agora!
Talvez assim, gradualmente, você sem perceber,
viverá a resposta num dia distante."

Rainer Maria Rilke

domingo, 7 de março de 2010

MULHERES DE AÇO E DE FLORES

A COSTUREIRA - MULHERES DE AÇO E DE FLORES
Ando tão apertada de costura que se o dia tivesse vinte e cinco horas ainda sobrariam três ou quatro botões para pregar.
Essa vida anda depressa demais. Quando menos imagino, o dia já se foi, esse desaforado!
Vivo para ajeitar as mulheres. Prepará-las para ocasiões são jantares, casamentos, formaturas. Vivo para ajudar a esconder os defeitos.
A gordura localizada, a estria, a celulite. Em situações mais raras, saliento as virtudes.
Adelaide Moura não costura com nenhuma outra pessoa porque só eu sei esconder aquele culote. Branca Rodarte não dá um passo para fora de casa se a roupa que estiver vestindo não tiver saído da minha máquina.
É quase uma ciência a forma com que disfarço a sua falta de seios. Um enchimento aqui, outro enchimento ali. O tecido socorrendo a ausência de carnes. O que falta em umas sobra em outras.
Lídia Boaventura costura comigo por uma razão contrária à de Branca. Nela, a natureza resolveu sobrar generosa. Cores e tecidos a serviço da ação clandestina. Mundo esquisito, meu Deus!
Helena Sobreira não sabe o que fazer com tanta carne.A única cor que lhe cai um pouquinho melhor é o preto. Parece uma viúva eterna.Eu me exercito no ofício de costurar tecidos desde os dezesseis anos de idade. Herdei o dom de minha mãe, que por sua vez herdou o dom de minha avó. Uma ancestrali-
dade! Fazer roupas é um jeito de ver os bastidores dos acontecimentos. Enquanto todo mundo vê a roupa por fora eu vejo é por dentro, nos seus avessos. O que vejo do tecido é sua sustentação primeira, sua trama. Um tecido só é bonito de verdade à medida que possui um avesso que o sustenta. A
beleza externa só tem sentido porque há um alicerce no contraponto. Interessante, mas as pessoas são semelhantes aos tecidos. Se não há uma trama de sustentação não há beleza que possa sobreviver aos desmandes do mundo. Rosélia Adamastor nunca foi feliz. Talvez tenha sido a mulher mais bela que a nossa pequena cidade tenha conhecido. Mas a sua beleza não repercutiu na sua alma.
Não foi o suficiente para lhe fazer feliz. Faltou um avesso de tramas resistentes. É estranho. Já Eliodora Fernandes sempre foi de uma feiúra de dar dó na gente. Mas o interessante é que nunca faltou um sorriso naquela criatura. O avesso foi bem feito.
Mulheres por dentro e por fora. Mistérios que me despertam coragem para continuar costurando. Minha máquina é minha realidade. É dela que parto para os meus sonhos. O que materialmente corto, ajunto e costuro, de alguma forma repercute dentro de mim. Eu toco constantemente os bastidores da vida. E é a partir desses avessos que construo pontes que me levam para outros mundos.
Eu costuro a realidade com linhas de sonhos. Imagino.E no ato de imaginar sou retirada para dançar, repito a sobremesa, comento a elegância dos adornos; troco olhares com o garçom. Rodopio enquanto danço pelo salão; recebo elogios pela escolha do penteado, a seda do vestido. Tudo isso sem sair de minha máquina. As linhas que entrelaçam os tecidos suturam o meu coração a realidades inexistentes.
E por isso sou especialista em ver além das aparências. Sei do que os tecidos são capazes e as viagens que proporcionam. Se não tivesse essa habilidade não me restaria muita coisa. A vida na castidade, o corpo preservado, as pernas sem destinos, os cabelos sem fi tas, o pescoço sem colares.

A vida na mais perfeita e absoluta normalidade. Nem um risco no calendário, nenhum dia convidado a sair do esquecimento; nenhum convite pregado na geladeira, nada que anuncie um sábado com aspecto de primavera: horário marcado no salão, atenção especial para um corte de vestido, retoque de tinta no sapato de ocasião.
Eu viajo é nas cores dos tecidos. Quilômetros e quilômetros de linhas me levam pelo mundo afora. O meu porto é a minha máquina. Nela eu sacramento partidas que não terminam nunca. Aprendi muito cedo que o sonho é mais que a realidade. No sonho, o cruel se desfaz com a mudança de foco.
É simples. É só deixar de pensar. Se a paixão não convém é só trocar a cara. Fácil de resolver. A imaginação permite retoque, mudanças constantes. De Belo Horizonte a Paris eu levo um segundo.
Não pago passagem, nem tenho problema com excesso de bagagem. Eu vou leve. Esqueço as roupas. Volto pra buscar. Troco a cena.Mudo o clima. Faço vir a chuva para dormir logo. Solicito o sol para o meu mergulho e imagino a neve para amenizar o calor.Acendo lareiras nas noites frias; encontro a promissória perdida; ganho na loteria, e divido o prêmio com os pobres.
Na angústia, adio a decisão. Na agonia, antecipo o fim. Na alegria, eu prolongo o início. O tempo não tem poder sobre minha velha máquina de costura. Ela o desafia constantemente. Desafio que demonstra intimidade, parceria. Minhas pernas não andam, mas chegam. Chegam aos lugares que aos sonhos pertencem. O homem amado, o amor miúdo de toda hora, a espera no portão, o medo de que ele se atrase e que desista por vergonha, que não mande recado. Medo de que a espera fi que
superior ao tempo reservado para as esperas que se confundem com a alegria.A casa sem número ainda em construção. A planta discutida; o desejo partilhado de uma varanda que nos proporcione uma visão do outro lado da rua. O lugar não habitado,clandestino, iluminado por um poste de madeira. Os insetos voando em movimentos circulares, tais como os amantes ao redor de suas esperanças. Coisas pequenas que nos fizessem reviver os encantos dos tempos já idos, vividos, ancorados nos porões da memória, dos dias em que a vida era acontecimento certo, rotina garantida, panos estendidos à espera de corte.
Eu não sei viver de outro modo. Quando quis a realidade, ocorreu-me a solidão e o despreparo. Vi o tecido da vida se desprender de minhas mãos, e com ele a minha habilidade. E naquele dia, o vestido de Eliane Vieira não ficou pronto a tempo da ocasião para a qual ela o havia solicitado.
O choro incontido o dia inteiro, a dor na alma, o inchaço nos olhos, a pouca visão. O fogão de quatro bocas com os cozidos de minha preferência permaneceu intacto. Rosalinda não ousou perguntar a razão da tristeza. Apenas anunciou que já estava indo e que se precisasse eu saberia onde encontrá-la.
A noite com suas demoras parecia despencar as estrelas sobre o teto do meu abrigo. A dor tinha cheiro de hortelã. Não sei a razão. Tristeza nem sempre tem razão. Apenas dói com seus cheiros estranhos.
As dores da infância tinham cheiro de dama-da-noite. A pequena planta fi cava na beirada da porta da cozinha. A mesma porta sempre entreaberta para que meu pai pudesse
entrar em casa depois de suas aventuras, quando a madrugada já era a dona do mundo.Não tê-lo em casa causava um imenso arrocho no meu coração. Boca seca, descompasso na fala, olhos curiosos, mãos sem lugar, sem coragem de pegar o rosário para uma oração que preservasse meu pai da infidelidade.
A cama estendida, os lençóis intocados, a vida seguindo o curso de sua passagem. As horas, os minutos, os segundos, o tempo.O silêncio vez ou outra era quebrado de forma sutil por um movimento de mulher que esperava. Vinha do quarto de costuras. O barulho da máquina de minha mãe era tão manso quanto suas alegrias.
Eu tantas vezes quis sair do quarto, crescer no tamanho e na coragem, vestir um vestido de mulher adulta, tomar minha mãe pelos braços, abrir a porta da sala, acender um cigarro, e esbravejar com voz de quem já havia vivido duzentos anos. Vamos buscar aquele vagabundo na rua! –. Sentia-me imensa por dentro, mas o corpo só tinha 8 anos. Queria resgatar minha mãe de sua espera torturante, mas eu ainda não era capaz de amarrar os meus sapatos sozinha.Num certo dia de agosto, quando os cães enlouquecem de tanto calor, a porta da cozinha amanheceu entreaberta. Sentada em sua máquina, minha mãe viu que o dia havia amanhecido sem que seus ouvidos tivessem ouvido o bater de porta que nos aliviava a existência.Sozinha no meu quarto eu havia acompanhado a vigília da espera. Quando coloquei a minha cara na porta da cozinha, pela primeira vez pus minha atenção na profundidade que havia no cheiro da hortelã.Manoel Carreira estava chegando pelos fundos, gritando pelo nome de minha mãe. A notícia foi dada sem rodeios: meu pai estava morto.Desde então, minha mãe iniciou-me no ofício de costurar tecidos. Ensinou-me os segredos das texturas e das cores. Foi com redobrada atenção que me ensinou a puxar da máquina, juntamente com as linhas dos carretéis, as linhas dos sonhos. Ela dizia: – Tem de enxergar o que a cliente quer! Ajude a transformar o sonho em realidade! –, insistia.
E foi assim que o sonho se tornou a minha realidade.Quando minha mãe morreu, eu já acumulava 26 anos. Ao chegar em casa, depois do sepultamento, entrei em seu quartinho de costura. Ainda havia carretel de linha colocado na máquina. Um pedaço de tecido azul marinho estava cortado, pronto para a costura. Um outro pedaço de tecido branco estava riscado como detalhe para a gola, pronto para o corte. Um paletó de mulher, eu percebi. O paletó que estava fazendo para ela mesma. Os aviamentos; pequenas amostras de sianinhas estavam colocadas ao lado do tecido. Intuí que a escolha ainda não era definitiva. Dois modelos de botões também estavam reservados. Já era fi m de tarde. A dama-da-noite começava a demonstrar que existia. Sentei-me na máquina e pus-me a fazer aquele paletó de mulher. Uma costura a quatro mãos.
Mãos vivas, mãos mortas. O que ela havia começado eu resolvi terminar. Cumplicidade só possível aos que amam sem os limites do tempo. Um paletó que seria usado em ocasiões simples. Missa das 6 da manhã. Mesmo no verão o vento era frio naquela hora.
Uma visita ao Santíssimo Sacramento nas noites de quinta-feira, ou até mesmo as pequenas comemorações do grupo da terceira idade. Enquanto costurava, pude experimentar a minha dor com todas as suas conseqüências. – Já não há razões para este paletó! –, pensei. Já não há mais o corpo que iria vesti-lo. Os dois pequenos bolsos não aquecerão as mãos calejadas de tesoura e agulhas. As mãos desaprenderam de ser vivas. Já não movimentam o risco, o molde, o corte e a fechadura da porta.
Algumas horas depois escolhi os botões. Decidi com segurança pelo que tinha detalhes de fl ores delicadas. Senti-me orgulhosa por conhecer os gostos de minha costureira favorita.
Quando dei por mim a noite já estava avançada em horas. O tempo em que durou o meu ofício partilhado não pertenceu à natureza do tempo que passa. Pude notar em mim algo superior. A costura daquele tecido extrapolou a materialidade. Ela foi além. Atingiu também a minha alma. Costurou-me de forma definitiva às mãos que me fizeram mulher, ao ventre que me teceu para o mundo, o avesso de minha sustentação. Cumpri na minha carne o milagre bonito da continuidade, e por que não dizer, da ressurreição gloriosa. Ao terminar o que ela havia começado, eu colocava os meus pés numa missão evangélica, semelhante à que os discípulos de Jesus precisaram cumprir para que o mestre não morresse na morte. Depois da pedra posta os passos precisam reencontrar a direção da vida. E foi o que eu fi z. O ritual de sepultamento terminou ali, na ressurreição que a máquina de costura me proporcionou.Há coisas que a morte não sepulta porque pertencem à vida eternizada. Minha mãe está em mim. E liturgicamente eu pude repetir: – Ela está no meio de nós! Terminado o paletó, abracei-o e dancei com ele uma valsa de despedida e de saudade!

Fábio de Melo
Fonte: http://www.flickr.com/photos/41687022@N07/4040158701/


"No fundo, não há bons nem maus.
Há apenas os que sentem prazer em fazer o bem e
os que sentem prazer em fazer o mal.
Tudo é volúpia…"


Mário Quintana
Os rios não foram feitos pra medir margens...
eles seguem sempre em frente, correm solto, transpõem os limites,
suportam as tempestades, se adequam e se alargam.

Não queiram me transformar em lago, limitar minhas bases,
controlar minha passagem, designar quais serão as minhas paragens....
eu fui feita para ir além do previsto... nasci para exceder…
cresço por querer transbordar...sou alma alagada.
Um mundo de águas me espera e eu vou desaguar…

Um dia serei mar...

Erikah Azzevedo
A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
Que eu já tô ficando craque em ressurreição.
Bobeou eu tô morrendo
Na minha extrema pulsão
Na minha extrema-unção
Na minha extrema menção
de acordar viva todo dia
Há dores que sinceramente eu não resolvo
sinceramente sucumbo
Há nós que não dissolvo
e me torno moribundo de doer daquele corte
do haver sangramento e forte
que vem no mesmo malote das coisas queridas
Vem dentro dos amores
dentro das perdas de coisas antes possuídas
dentro das alegrias havidas.

Há porradas que não tem saída
há um monte de "não era isso que eu queria"
Outro dia, acabei de morrer
depois de uma crise sobre o existencialismo
3º mundo, ideologia e inflação...

A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
ensaiar mil vezes a séria despedida
a morte real do gastamento do corpo
a coisa mal resolvida
daquela morte florida
cheia de pêsames nos ombros dos parentes chorosos
cheio do sorriso culpado dos inimigos invejosos
que já tô ficando especialista em renascimento.

Hoje, praticamente, eu morro quando quero:
às vezes só porque não foi um bom desfecho
ou porque eu não concordo
Ou uma bela puxada no tapete
ou porque eu mesma me enrolo
Não dá outra: tiro o chinelo...
E dou uma morrida!
Não atendo telefone, campainha...
Fico aí camisolenta em estado de éter
nem zangada, nem histérica, nem puta da vida!
Tô nocauteada, tô morrida!

Morte cotidiana é boa porque além de ser uma pausa
não tem aquela ansiedade para entrar em cena
É uma espécie de venda
uma espécie de encomenda que a gente faz
pra ter depois ter um produto com maior resistência
onde a gente se recolhe (e quem não assume nega)
e fica feito a justiça: cega
Depois acorda bela
corta os cabelos
muda a maquiagem
reinventa modelos
reencontra os amigos que fazem a velha e merecida
pergunta ao teu eu: "Onde cê tava? Tava sumida, morreu?"
E a gente com aquela cara de fantasma moderno,
de expersona falida:
- Não, tava só deprimida.

Elisa Lucinda
Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

Fernando Pessoa

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Carlos Drummond de Andrade

08 de Março - Dia Internacional da Mulher


As comemorações do 8 de março estão mundialmente vinculadas às reivindicações femininas por melhores condições de trabalho, por uma vida mais digna e sociedades mais justas e igualitárias. Essa luta é antiga e contou com a força de inúmeras mulheres que nos vários momentos da história da humanidade resistiram ao machismo e à discriminação.

É a partir da Revolução francesa, em 1789, que as mulheres passam a atuar na sociedade de forma mais significativa, reivindicando a melhoria das condições de vida e trabalho, a participação política, o fim da prostituição, o acesso à instrução e a igualdade de direitos entre os sexos.

É nessa época que surge o nome da francesa Olympe de Gouges. Em 1791, ela lança a "Declaração dos Direitos da Cidadã", onde reivindicava o "direito feminino a todas as dignidades, lugares e empregos públicos segundo suas capacidades". Afirmava também que "se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, ela deve poder subir também à tribuna". Olympe de Gouges foi julgada, condenada à morte e guilhotinada em 3 de março de 1793, por "ter querido ser um homem de estado e Ter esquecido as virtudes próprias do seu sexo". Nesse mesmo ano, as associações femininas foram proibidas na França.

Revolução Industrial

Na Segunda metade do século XVIII, as grandes transformações ocorridas no processo produtivo e que resultaram na Revolução Industrial, trouxeram consigo uma série de reivindicações até então inexistentes. A absorção do trabalho feminino pelas indústrias, como forma de baratear os salários, inseriu definitivamente a mulher no mundo da produção. Ela passou a ser obrigada a conviver com jornadas de trabalho que chegavam até 17 horas diárias, em condições insalubres, submetidas a espancamentos e ameaças sexuais constantes, além de receber salários que chegavam a ser 60% menores que os dos homens.

Em exemplo típico do ambiente fabril na época era a tecelagem Tydesley, em Manchester, na Inglaterra, onde se trabalhava 14 horas diárias a uma temperatura de 29º, num local úmido, com portas e janelas fechadas e, na parede, um cartaz afixado proibia, entre outras coisas, ir ao banheiro, beber água, abrir janelas ou acender as luzes.

Luta Operária

Não tardaram a surgir, na Europa e nos Estados Unidos, manifestações operárias contrárias ao terrível cotidiano vivenciado e os enfrentamentos com o patronato e a polícia se tornaram cada vez mais freqüentes. A redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias passou a ser a grande bandeira dos trabalhadores industriais.

Em 1819, depois de um enfrentamento em que a polícia atirou com canhões contra os trabalhadores, a Inglaterra aprovou a lei que reduzia para 12 horas o trabalho das mulheres e dos menores entre 9 e 16 anos. Foi também a Inglaterra o primeiro país a reconhecer, legalmente, o direito de organização dos trabalhadores. O parlamento inglês aprovou, em 1824, o direito de livre associação e os sindicatos se organizaram em todo o país.

Foi no bojo das manifestações pela redução da jornada de trabalho que 129 tecelãs da Fábrica de Tecidos Cotton, em Nova Iorque, cruzaram os braços e paralisaram os trabalhos pelo direito a uma jornada de 10 horas, na primeira greve norte-americana conduzida unicamente por mulheres. Violentamente reprimidas pela polícia, as operárias, acuadas, refugiaram-se nas dependências da fábrica. No dia 8 de março de 1857, os patrões e a polícia trancaram as portas da fábrica e atearam fogo. Asfixiadas, dentro de um local em chamas, as tecelãs morreram carbonizadas.

Durante a II Conferência Internacional de Mulheres, realizada em 1910 na Dinamarca, a famosa ativista pelos direitos femininos, Clara Zetkin, propôs que o 8 de março fosse declarado como o Dia Internacional da Mulher, homenageando as tecelãs de Nova Iorque. Em 1911, mais de um milhão de mulheres se manifestaram na Europa. A partir daí, essa data começou a ser comemorada no mundo inteiro.

Texto extraído de "8 de março, Dia Internacional da Mulher – Uma data e muitas histórias", de Carmen Lucia Evangelho Lopes.. CEDIM-SP/Centro de Memória Sindical.

Fonte: www.redemulher.org.br/espanhol/8demarco.htm

Mulheres


Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo que acreditam.
Elas levantam-se para injustiça.
Elas não levam "não" como resposta quando
acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos para
suas crianças poder tê-los.
Elas vão ao medico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prêmios.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversario ou um novo casamento.

Pablo Neruda

Mulher, heroína sem rosto



O real sentido da palavra heroína não remete a alguém com poderes sobrenaturais que surge à noite para salvar a cidade das garras de algum ser malvado. A verdadeira heroína é a que foi vencendo obstáculos à medida que surgiram os obstáculos.

O seu trabalho consiste em algo mais difícil do que capturar o delinquente mais procurado. O seu objetivo máximo é aquele que melhor sabe fazer: educar o ser humano e dar amor.

O sexo feminino é a principal fonte de subsistência, pois não apenas concebe uma criatura em seu ventre, mas a conserva, deixa-a crescer em seu interior, sempre consciente de que o que está dentro dela é um milagre que irá mudar a sua existência. Assim é como a mulher se torna mãe, não apenas potencialmente, mas dando início ao ato da maternidade.

Uma mãe não se separa do seu filho até que este seja capaz de se virar por conta própria e, quando chega esse momento, aquele ser maravilhoso trará impresso o selo de quem o educou e o levou pelos caminhos da melhor educação.

Na grande maioria das vezes, aclamamos ilustres personagens da história por suas grandes obras, por suas idéias, pela sua maneira de mudar o mundo por meio de sua luta. Poucas são as pessoas que param e se aprofundam em tal admiração e se dão conta de que os maiores filósofos, cientistas e escritores tiveram mãe. Uma mulher ao seu lado, sempre velando pelo seu bem e mantendo-os em suas entranhas. Alguém que foi capaz de os ver crescer até onde foi possível e até que seus olhos estivessem cansados. No fim das contas, foi uma mãe quem deu o impulso para que um grande pensador contribuísse com suas idéias e invenções, desde os pré-socráticos aos intelectuais mais próximos a este século.

Você, que é mãe, tem uma grande oportunidade de formar um líder. Deve se sentir privilegiada e orgulhosa, pois foi entregue a você a ocasião perfeita de impulsionar heróis para a sociedade.

Você, condutora de cada passo, educadora do futuro, heroína oculta.

Ana Cecilia Pereyra, Colaboradora do site Mujer Nueva
Fonte: www.portaldafamilia.org/artigos/artigo537.shtml

Mulher Inteligente

Inúmeras vezes, escutei alguém dizer: -" Você é muito inteligente para uma dona de casa!" Então, passei a maior parte da vida, exercendo a profissão certa pra mim - dona de casa.

É preciso inteligência para saber:

- que a roupa clara deve ser lavada separada da escura,

- que roupas atoalhadas devem ser lavadas em separado,

- como lavar tecidos delicados,

- como lavar roupas que largam tinta,

- como tirar manchas das roupas,

- como colocar roupas de molho,

- que há diferenças entre tipos e marcas de sabão,

- que há diferenças entre os alvejantes e os amaciantes,

- que a quantidade de sabão em pó na máquina de lavar precisa ser dosada,

- como torcer roupas lavadas,

- que a roupa lavada precisa ser bem colocada no varal ,

- que a roupa retirada do varal deve ser guardada dobrada ou em cabide (camisas),

- que lavar e passar roupa parece simples mas, não é... se considerarmos que nossas roupas precisam ter durabilidade, estar limpas, bem passadas e se possível, cheirosas.

Uma pessoa que cozinhou durante vinte anos sem gostar, dificilmente fará uma boa comida. Até para fritar um ovo, é preciso gostar. Se eu pegar a frigideira resmungando e o óleo me lamentando, quando quebrar o ovo, vai ser com mão de pugilista pronto a desferir um golpe fatal no adversário.

Tudo será diferente, se calmamente eu escolher a frigideira, dosar a quantidade de óleo, deixando o vasilhame por perto (para o caso de ser novamente necessário), quebrar os ovos em um prato fundo com cuidado (há sempre a possibilidade de haver um ovo estragado). E, depois, colocá-los na frigideira lentamente, para que se espalhem por igual no óleo. O fogo médio os deixará no ponto ideal para serem salgados, com bem dosadas pitadas de sal. Quando estiverem prontos, deixo-os escorregar da frigideira para uma travessa. E, ao usar o bom humor e a paciência, serei duplamente recompensada, ao comer um prato saboroso, sem estar preocupada com a hora de lavar a frigideira.

Ainda bem que essa profissão nunca me deixará desempregada - os filhos crescem e nascem os netos... E, quem quiser, pode guardar a receita acima no caderno de receitas - chama-se: "ovo frito amoroso" ou, se preferir, "amorovo".

Lenise Resende (07/03/01)
Lendo & Relendo - http://www.lendorelendo.com

QUARESMA

VIAGEM NO DESERTO


das coisas peregrinas

que ousemos o entusiasmo
da luz de cada dia,
a agilidade dos vindimadores
socalco acima

mantém-nos, Deus, ao rés da terra,
e altos, de inquietos, vigilantes voos

não se esgotem as cisternas
da paciência para a vida,
nem os agapantos azuis
nos encharquem de clandestina morte

dá-nos o paladar das coisas peregrinas,
o lugar do vento que não sabe donde,
o sítio dos comboios nos apeadeiros breves

que no rodopio das horas
a tua mão nos mostre o pino do sol
e o cheiro a mosto e a pão de milho
anuncie a ceia, a mesa da justiça, do bem e da beleza

transfiguração

entremos mais dentro da espessura, façamos uma tenda, uma pausa breve que antecipe a Páscoa
e nos esclareça
acerca do segredo e da glória de Deus inacessível
na face do Cristo, ícone de Deus

vinde, escalemos a montanha do Senhor, o universo inteiro foi santificado
pela luz que o resgatou da transfiguração:
hoje o Cristo foi transformado na glória do Tabor

que nos ilumine a luz do seu conhecimento
nos carreiros da vida
e nos purifique do que a sombra
em nós escureceu

que a coluna de fogo que revelou a Moisés
o Cristo transfigurado
nos purifique desta sombra e deste escuro

pratiquemos este lugar e esta hora
porque este é o tempo da ficção do rosto, o tempo de repensar feridas
e refigurar o chão das coisas,
o seu uso e a sua banalidade

vinde, conversai com o Espírito
e a brisa ligeira vos refresque o rosto vinde, conversai com Maria,
o paraíso místico:
ela nos ensine a beleza do canto
e a beleza desta hora

da dívida

Deus, tu conheces as armadilhas
que a culpabilidade e o desejo armam
e conheces também as profundidades imemoráveis
do que em nós se tece do teu nome,
dos caminhos da tua cruz e da esperança

clarifica os labirintos por que te procuramos
e perdemos
as vinganças e as des-razões do nosso coração

questiona as raízes obscuras e os sinais luminosos,
as vozes antigas e as visões
para que te reconheçamos
como o apelo daquele que vem
na promessa de uma verdade e de uma presença
e tenhamos parte no tempo do amor e da fruição,
nós que no tempo somos os peregrinos da tua face,
Deus da nossa dívida e do nosso desejo,
Deus de Jesus Cristo nossa alegria
E do Espírito de quem vem a vida

vem procurar-nos

Deus que escutas o mundo,
e o barulho dos nossos corpos contra o molhe,
vem procurar-nos ao fundo da nossa noite,
lá onde os fantasmas nos devoram
e as belas palavras nos desmultiplicam
vem procurar-nos, Deus
ao fundo da nossa profissão de descontentamento
e de exportadores de deuses

não nos entregues aos nossos próprios discursos;
dá-nos antes um corpo de escuta e de desejo
para que te reconheçamos ao largo das nossas vidas.

livra-nos, Senhor,
do medo de sermos encontrados diante de ti
como uma chaga aberta ou fonte
e concede-nos que te digamos
com toda a água e todo o sal da nossa vida

venha o teu tempo

Deus, dá à nossa vida
a pobreza do Espírito e da miséria
pois só assim se conhece a esperança
dá-nos o dom da doçura
que acalma a tristeza e reduz o ódio
dá-nos a presença discreta e silenciosa
junto dos que sofrem

que a justiça que não demos
nos pese como a fome ou a sede
e não apenas como uma palavra vazia;
que se abra à miséria o nosso coração
e saibamos perdoar;
dá-nos o conhecimento e o gosto das lágrimas
para melhor acolhermos a vida
e os recomeços

que venha o teu tempo, Deus,
o teu dia,
não amanhã,
mas o hoje
e para um tempo
que não acabará nunca

o passante

àqueles que vigiam
desde o despontar do dia
concede a tua luz laranja

que os nossos lábios te louvem
e as portas dos nossos corações
de par em par se abram
e permaneçam assim abertas
aos que passam,

tu o passante
da noite terrível da solidão
e do abandono,
Deus do que sabe o dia
e teme a noite,
e a cada um conhece pelo nome

momento penitencial

cura-nos, Senhor, das feridas da malícia
que a vontade abriu, desgovernada

cura-nos, Senhor, das feridas da ignorância que a inteligência consentiu,
tão cega de destino e de prudência

cura-nos, Senhor, das feridas da lassidão
a que o apetite sensível nos expõe,
perdidas as rédeas da razão e da vontade

cura-nos, Senhor, das feridas das concupiscências várias
pois mal sabemos já distinguir entre as cobiças
as que ao bem conformes, ou combatendo-o

que a hora de Jesus Cristo,
nosso irmão em nossa natureza
enxote a sombra que vestiu Adão
e nos escureceu

que a tua obra nos integre
no arco-íris da graça e da justiça,
abertas as portas ao Espírito,
o nosso corpo alagado, renascido,
para a faina dos dias
e o louvor das horas

Deus absconditus

onde estás, Deus libertador
que nos perguntam por ti e não te vemos?
Deus escondido, onde estás?
Devemos procurar-te entre os destroços,
a cinza e as mãos cortadas como canas verdes,
ou à frente das batalhas,
entre os que caminham como o vento
e as folhas das plantas, sensíveis à luz,
entre os que vão de cabeça alta e regressam
da servidão do saco e do tijolo
os que acordados vêm,
os pés recentemente desatados,
a língua solta?
Deus escondido, onde moras?
devemos procurar-te entre as que fizeram o êxodo
e começaram a amar,
os que morrendo a si já ressuscitam
os que rompem as muralhas da pele e pedem água?
devemos procurar-te naqueles que sobem à montanha
para molhar as mãos de luz e transfigurar-se?
(na solidão dos montes apalparei a tua face?
na limpidez dos rios e as palavra
com que fizeste o mundo verei a tua mão correndo?

onde devemos esperar-te, Deus da surpresa
e como nós trânsfuga?
Deus dos que não têm voz nem barcos
para na albufeira olhar a alma
a crescer como a sombra dos pinheiros
anoitece a alma e o rio,
Deus gratuito, onde estás?

devemos procurar-te na poesia e no canto,
no amor e na beleza,
na barraca e no lixo?
onde apareces, Deus amigo dos pobres,
onde te acharemos, Deus libertador?

intróito

I

nós pedimos o pão
como o elementar da vida
e pedimos o perdão
como a leveza que transporta o mundo

quando voltamos os olhos para Deus
que não está no céu,
mas no mistério da vida infinita,
inimaginável,
donde Ele vem e se faz próximo,
que dizemos?

que o Misericordioso
alivie a nossa vida do peso do ressentimento
e da angústia do abandono
e nos faça entrar na barca que leva ao paraíso
da vida abençoada

II

alguém saudou a escuridão da nossa casa;
alguém acordou e atiçou um sonho
onde ressoam passos de profetas

viemos para reconhecer
e atirar a nossa alma para a eira dessa batida

viemos para trocar os sonhos
que são o lugar de anamnese,
de unidade e de transcendência

antes de nós, Isaías, Acaz, Sofonias,
sonharam com o dia que se aproxima.
a hora é de adivinhar a presença amante
nos sinais do amor,
no perdão,
no devir de nós mesmos,
à luz que vem ungir os olhos
da doçura da misericórdia

III

traz a tua cruz e segue-me,
reúne as tuas memórias dolorosas
e o que sufoca a vida, o que te prostra e não compreendes
junta-te ao mal que atola o mundo,
junta o teu grão de dor à dor do mundo e segue-me
neste acto em que me dou a vós, baptizados no meu nome,
junta-te ao meu caminho, que foi de morte e foi de páscoa

estamos reunidos na memória da Páscoa
a fim de aprender a renascer das lágrimas
cada vez em que o tecido da nossa vida comum
irremediavelmente se rasgou,
tornando-se encontro com o Todo-desconhecido

Deus não é estranho a esta festa
em que dizemos, cada um no seu coração os nomes daqueles
que nos precederam na vida e nos afectos
e passaram a morte para se inscreverem
numa nova ordem de comunicação

porque dizer, aqui, é ligar:
a nossa vida está escondida em Deus:
Ele sabe a caminhada secreta para o repouso da sua Face.
só o Deus fiel pode fazer com que a nossa vida
não se perca na noite:
abandonemo-nos nas suas redes invisíveis

IV

infelizes vós os saciados
que viveis na ilusão de serdes a fonte e o mar
de todos os poderes e sentimentos e prazeres

infelizes vós que esqueceis a vossa condição de filhos
e vos julgais criadores de gado quando tratais com os outros

infelizes vós a quem nada vos falta
e vos atribuís o mérito do hiper-poder que é uma embriaguez

infelizes vós que não tendes fome da vida absoluta
e vos bastais com o alimento conhecido da vossa cobiça

infelizes vós que nada dilacera, nada esvazia
e enxutais do sofrimento a vida absoluta que o vela


embolismo

livra-nos, Senhor, da violência das palavras
quando não veem rostos
e semeiam lágrimas

livra-nos da violência surda,
do silêncio mutico, perverso,
das tradições do corpo que inundou a era

livra-nos da violência das coisas
que nos afogam, de excessivas

e liga-nos à diferença harmoniosa,
Deus que nos prometes a paz
e que esperamos na fronteira do fogo e da alegria

viagem no deserto

abre-nos, Deus, a porta
através das águas
para a grande viagem no deserto:
o combate com a morte no campo da vida,
a travessia dos limites, a nebulosa dos olhos

não se ensurdeça o nosso coração
porque a luta noctuma com o teu Nome
nos deixou no corpo marcas

dá-nos a graça de atravessar o riacho da vida
mesmo coxeando;
que caminhemos com a ligeireza
e a elegância do animal
que busca o esplendor do verdadeiro
nas coisas provisórias

e que desse combate com as imagens
nos aproximemos do horizonte da tua casa
donde vejamos as sementes do amor cobrindo a eira,

Deus que ligas o céu e a terra no teu Filho Jesus e no Espírito


Os poemas de O Nome e a Forma acompanham a nossa Quaresma.

José Augusto Mourão
In O Nome e a Forma, ed. Pedra Angular
Fotografia: Patrizio del Duca/Grand Tour/Corbis
Fonte: http://www.snpcultura.org/vol_viagem_no_deserto_quaresma_2010.html#2010_03_04