domingo, 7 de março de 2010

QUARESMA

VIAGEM NO DESERTO


das coisas peregrinas

que ousemos o entusiasmo
da luz de cada dia,
a agilidade dos vindimadores
socalco acima

mantém-nos, Deus, ao rés da terra,
e altos, de inquietos, vigilantes voos

não se esgotem as cisternas
da paciência para a vida,
nem os agapantos azuis
nos encharquem de clandestina morte

dá-nos o paladar das coisas peregrinas,
o lugar do vento que não sabe donde,
o sítio dos comboios nos apeadeiros breves

que no rodopio das horas
a tua mão nos mostre o pino do sol
e o cheiro a mosto e a pão de milho
anuncie a ceia, a mesa da justiça, do bem e da beleza

transfiguração

entremos mais dentro da espessura, façamos uma tenda, uma pausa breve que antecipe a Páscoa
e nos esclareça
acerca do segredo e da glória de Deus inacessível
na face do Cristo, ícone de Deus

vinde, escalemos a montanha do Senhor, o universo inteiro foi santificado
pela luz que o resgatou da transfiguração:
hoje o Cristo foi transformado na glória do Tabor

que nos ilumine a luz do seu conhecimento
nos carreiros da vida
e nos purifique do que a sombra
em nós escureceu

que a coluna de fogo que revelou a Moisés
o Cristo transfigurado
nos purifique desta sombra e deste escuro

pratiquemos este lugar e esta hora
porque este é o tempo da ficção do rosto, o tempo de repensar feridas
e refigurar o chão das coisas,
o seu uso e a sua banalidade

vinde, conversai com o Espírito
e a brisa ligeira vos refresque o rosto vinde, conversai com Maria,
o paraíso místico:
ela nos ensine a beleza do canto
e a beleza desta hora

da dívida

Deus, tu conheces as armadilhas
que a culpabilidade e o desejo armam
e conheces também as profundidades imemoráveis
do que em nós se tece do teu nome,
dos caminhos da tua cruz e da esperança

clarifica os labirintos por que te procuramos
e perdemos
as vinganças e as des-razões do nosso coração

questiona as raízes obscuras e os sinais luminosos,
as vozes antigas e as visões
para que te reconheçamos
como o apelo daquele que vem
na promessa de uma verdade e de uma presença
e tenhamos parte no tempo do amor e da fruição,
nós que no tempo somos os peregrinos da tua face,
Deus da nossa dívida e do nosso desejo,
Deus de Jesus Cristo nossa alegria
E do Espírito de quem vem a vida

vem procurar-nos

Deus que escutas o mundo,
e o barulho dos nossos corpos contra o molhe,
vem procurar-nos ao fundo da nossa noite,
lá onde os fantasmas nos devoram
e as belas palavras nos desmultiplicam
vem procurar-nos, Deus
ao fundo da nossa profissão de descontentamento
e de exportadores de deuses

não nos entregues aos nossos próprios discursos;
dá-nos antes um corpo de escuta e de desejo
para que te reconheçamos ao largo das nossas vidas.

livra-nos, Senhor,
do medo de sermos encontrados diante de ti
como uma chaga aberta ou fonte
e concede-nos que te digamos
com toda a água e todo o sal da nossa vida

venha o teu tempo

Deus, dá à nossa vida
a pobreza do Espírito e da miséria
pois só assim se conhece a esperança
dá-nos o dom da doçura
que acalma a tristeza e reduz o ódio
dá-nos a presença discreta e silenciosa
junto dos que sofrem

que a justiça que não demos
nos pese como a fome ou a sede
e não apenas como uma palavra vazia;
que se abra à miséria o nosso coração
e saibamos perdoar;
dá-nos o conhecimento e o gosto das lágrimas
para melhor acolhermos a vida
e os recomeços

que venha o teu tempo, Deus,
o teu dia,
não amanhã,
mas o hoje
e para um tempo
que não acabará nunca

o passante

àqueles que vigiam
desde o despontar do dia
concede a tua luz laranja

que os nossos lábios te louvem
e as portas dos nossos corações
de par em par se abram
e permaneçam assim abertas
aos que passam,

tu o passante
da noite terrível da solidão
e do abandono,
Deus do que sabe o dia
e teme a noite,
e a cada um conhece pelo nome

momento penitencial

cura-nos, Senhor, das feridas da malícia
que a vontade abriu, desgovernada

cura-nos, Senhor, das feridas da ignorância que a inteligência consentiu,
tão cega de destino e de prudência

cura-nos, Senhor, das feridas da lassidão
a que o apetite sensível nos expõe,
perdidas as rédeas da razão e da vontade

cura-nos, Senhor, das feridas das concupiscências várias
pois mal sabemos já distinguir entre as cobiças
as que ao bem conformes, ou combatendo-o

que a hora de Jesus Cristo,
nosso irmão em nossa natureza
enxote a sombra que vestiu Adão
e nos escureceu

que a tua obra nos integre
no arco-íris da graça e da justiça,
abertas as portas ao Espírito,
o nosso corpo alagado, renascido,
para a faina dos dias
e o louvor das horas

Deus absconditus

onde estás, Deus libertador
que nos perguntam por ti e não te vemos?
Deus escondido, onde estás?
Devemos procurar-te entre os destroços,
a cinza e as mãos cortadas como canas verdes,
ou à frente das batalhas,
entre os que caminham como o vento
e as folhas das plantas, sensíveis à luz,
entre os que vão de cabeça alta e regressam
da servidão do saco e do tijolo
os que acordados vêm,
os pés recentemente desatados,
a língua solta?
Deus escondido, onde moras?
devemos procurar-te entre as que fizeram o êxodo
e começaram a amar,
os que morrendo a si já ressuscitam
os que rompem as muralhas da pele e pedem água?
devemos procurar-te naqueles que sobem à montanha
para molhar as mãos de luz e transfigurar-se?
(na solidão dos montes apalparei a tua face?
na limpidez dos rios e as palavra
com que fizeste o mundo verei a tua mão correndo?

onde devemos esperar-te, Deus da surpresa
e como nós trânsfuga?
Deus dos que não têm voz nem barcos
para na albufeira olhar a alma
a crescer como a sombra dos pinheiros
anoitece a alma e o rio,
Deus gratuito, onde estás?

devemos procurar-te na poesia e no canto,
no amor e na beleza,
na barraca e no lixo?
onde apareces, Deus amigo dos pobres,
onde te acharemos, Deus libertador?

intróito

I

nós pedimos o pão
como o elementar da vida
e pedimos o perdão
como a leveza que transporta o mundo

quando voltamos os olhos para Deus
que não está no céu,
mas no mistério da vida infinita,
inimaginável,
donde Ele vem e se faz próximo,
que dizemos?

que o Misericordioso
alivie a nossa vida do peso do ressentimento
e da angústia do abandono
e nos faça entrar na barca que leva ao paraíso
da vida abençoada

II

alguém saudou a escuridão da nossa casa;
alguém acordou e atiçou um sonho
onde ressoam passos de profetas

viemos para reconhecer
e atirar a nossa alma para a eira dessa batida

viemos para trocar os sonhos
que são o lugar de anamnese,
de unidade e de transcendência

antes de nós, Isaías, Acaz, Sofonias,
sonharam com o dia que se aproxima.
a hora é de adivinhar a presença amante
nos sinais do amor,
no perdão,
no devir de nós mesmos,
à luz que vem ungir os olhos
da doçura da misericórdia

III

traz a tua cruz e segue-me,
reúne as tuas memórias dolorosas
e o que sufoca a vida, o que te prostra e não compreendes
junta-te ao mal que atola o mundo,
junta o teu grão de dor à dor do mundo e segue-me
neste acto em que me dou a vós, baptizados no meu nome,
junta-te ao meu caminho, que foi de morte e foi de páscoa

estamos reunidos na memória da Páscoa
a fim de aprender a renascer das lágrimas
cada vez em que o tecido da nossa vida comum
irremediavelmente se rasgou,
tornando-se encontro com o Todo-desconhecido

Deus não é estranho a esta festa
em que dizemos, cada um no seu coração os nomes daqueles
que nos precederam na vida e nos afectos
e passaram a morte para se inscreverem
numa nova ordem de comunicação

porque dizer, aqui, é ligar:
a nossa vida está escondida em Deus:
Ele sabe a caminhada secreta para o repouso da sua Face.
só o Deus fiel pode fazer com que a nossa vida
não se perca na noite:
abandonemo-nos nas suas redes invisíveis

IV

infelizes vós os saciados
que viveis na ilusão de serdes a fonte e o mar
de todos os poderes e sentimentos e prazeres

infelizes vós que esqueceis a vossa condição de filhos
e vos julgais criadores de gado quando tratais com os outros

infelizes vós a quem nada vos falta
e vos atribuís o mérito do hiper-poder que é uma embriaguez

infelizes vós que não tendes fome da vida absoluta
e vos bastais com o alimento conhecido da vossa cobiça

infelizes vós que nada dilacera, nada esvazia
e enxutais do sofrimento a vida absoluta que o vela


embolismo

livra-nos, Senhor, da violência das palavras
quando não veem rostos
e semeiam lágrimas

livra-nos da violência surda,
do silêncio mutico, perverso,
das tradições do corpo que inundou a era

livra-nos da violência das coisas
que nos afogam, de excessivas

e liga-nos à diferença harmoniosa,
Deus que nos prometes a paz
e que esperamos na fronteira do fogo e da alegria

viagem no deserto

abre-nos, Deus, a porta
através das águas
para a grande viagem no deserto:
o combate com a morte no campo da vida,
a travessia dos limites, a nebulosa dos olhos

não se ensurdeça o nosso coração
porque a luta noctuma com o teu Nome
nos deixou no corpo marcas

dá-nos a graça de atravessar o riacho da vida
mesmo coxeando;
que caminhemos com a ligeireza
e a elegância do animal
que busca o esplendor do verdadeiro
nas coisas provisórias

e que desse combate com as imagens
nos aproximemos do horizonte da tua casa
donde vejamos as sementes do amor cobrindo a eira,

Deus que ligas o céu e a terra no teu Filho Jesus e no Espírito


Os poemas de O Nome e a Forma acompanham a nossa Quaresma.

José Augusto Mourão
In O Nome e a Forma, ed. Pedra Angular
Fotografia: Patrizio del Duca/Grand Tour/Corbis
Fonte: http://www.snpcultura.org/vol_viagem_no_deserto_quaresma_2010.html#2010_03_04

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