sábado, 13 de setembro de 2008

FERNANDO PESSOA de J a M

Lembro-me ou não ? Ou sonhei ?

LEMBRO-ME ou não ? Ou sonhei ?
Flui como um rio o que sinto.
Sou já quem nunca serei
Na certeza em que me minto.
O tédio de horas incertas
Pesa no meu coração,
Paro ante as portas abertas
Sem escolha nem decisão.


Leva-me longe, meu suspiro fundo,

Leva-me longe, meu suspiro fundo,
Além do que deseja e que começa,
Lá muito longe, onde o viver se esqueça
Das formas metafísicas do mundo.
Aí que o meu sentir vago e profundo
O seu lugar exterior conheça,
Aí durma em fim, aí enfim faleça
O cintilar do espírito fecundo.

Aí ... mas de que serve imaginar
Regiões onde o sonho é verdadeiro
Ou terras para o ser atormentar ?

É elevar demais a aspiração,
E, falhado esse sonho derradeiro,
Encontrar mais vazio o coração.


Leve, breve, suave,

Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.
Nunca, nunca em nada,
Raie a madrugada,
Ou 'splenda o dia, ou doure no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.


Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer !
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não !

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...


Longe de mim em mim existo

LONGE DEMIM em mim existo
À parte de quem sou,
A sombra e o movimento em que consisto.


Mais triste do que o que acontece

Mais triste do que o que acontece
É o que nunca aconteceu.
Meu coração, quem o entristece?
Quem o faz meu?
Na nuvem vem o que escurece
O grande campo sob o céu.
Memórias? Tudo é o que esquece.
A vida é quanto se perdeu.
E há gente que não enlouquece!
Ai do que em mim me chamo eu!


Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia !


Maravilha-te, memória!

MARAVILHA-TE, memória!
Lembras o que nunca foi,
E a perda daquela história
Mais que uma perda me dói.
Meus contos de fadas meus -
Rasgaram-lhe a última folha...
Meus cansaços são ateus
Dos deuses da minha escolha...

Mas tu, memória, condizes
Com o que nunca existiu...
Torna-me aos dias felizes
E deixa chorar quem riu.


Mas eu, alheio sempre, sempre entrando

Mas eu, alheio sempre, sempre entrando
O mais íntimo ser da minha vida,
Vou dentro em mim a sombra procurando.


Meu ser vive na Noite no Desejo

MEU SER VIVE na Noite e no Desejo.
Minha alma é uma lembrança que há em mim.


Meus dias passam, minha fé também

MEUS DIAS passam, minha fé também.
Já tive céus e estrelas em meu manto.
As grandes horas, se as viveu alguém,
Quando as viveu, perderam já o encanto.


Momento imperceptível

Momento imperceptível,
Que coisa foste, que há
Já em mim qualquer coisa
Que nunca passará?

Sei que, passados anos,
O que isto é lembrarei,
Sem saber já o que era,
Que até já o não sei.

Mas, nada só que fosse,
Fica dele um ficar
Que será suave ainda
Quando eu o não lembrar.


Música... Que sei eu de mim?

MÚSICA... Que sei eu de mim?
Que sei eu de haver ser ou estar?
Música... sei só que sem fim
Quero saber só de sonhar...
Música... Bem no que faz mal
À alma entregar-se a nada...
Mas quero ser animal
Da insuficiência enganada

Música... Se eu pudesse ter,
Não o que penso ou desejo,
Mas o que não pude haver
E que até nem em sonhos vejo,

Se também eu pudesse fruir
Entre as algemas de aqui estar!
Não faz mal. Flui,
Para que eu deixe de pensar!

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