segunda-feira, 15 de setembro de 2008

FERNANDO PESSOA de U a V

Última Estrela

Última estrela a desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trêmulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim;
Alegre pelo critério (?) que tenho em Poder ver-te
Sem "estado de alma" nenhum, sonho ver-te.
A tua beleza para mim está em existires
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


Uma maior solidão

Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração.
Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.

Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim.
23-10-1931


Vai alta a nuvem que passa

Vai alta a nuvem que passa,
Branca, desfaz-se a passar,
Até que parece no ar
Sombra branca que esvoaça.

Assim no pensamento
Alta vai a intuição,
Mas desfaz-se em sonho vão
Ou em vago sentimento.

E se quero recordar
O que foi nuvem ou sentido
Só vejo alma ou céu despido
Do que se desfez no ar.
15-6-1933


Uns Versos Quaisquer

Vive um momento com saudade dele
Já ao vivê-lo . . .
Barcas vazias, sempre nos impele
Como a um solto cabelo
Um vento para longe, e não sabemos,
Ao viver, que sentimos ou queremos . . .

Demo-nos pois a consciência disto
Como de um lago
Posto em paisagens de torpor mortiço
Sob um céu ermo e vago,
E que nossa consciência de nós seja
Uma cousa que nada já deseja . . .

Assim idênticos à hora toda
Em seu pleno sabor,
Nossa vida será nossa anteboda:
Não nós, mas uma cor,
Um perfume, um meneio de arvoredo,
E a morte não virá nem tarde ou cedo . . .

Porque o que importa é que já nada importe . . .
Nada nos vale
Que se debruce sobre nós a Sorte,
Ou, tênue e longe, cale
Seus gestos . . . Tudo é o mesmo . . . Eis o momento . . .
Sejamo-lo . . . Pra quê o pensamento? . . .
11.10.1914


Vai Alta no Céu

Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


Vento que passas

Vento que passas
Nos pinheirais
Quantas desgraças
Lembram teus ais.
Quanta tristeza,
Sem o perdão
De chorar, pesa
No coração.

E ó vento vago
Das solidões
Traze um afago
Aos corações.

À dor que ignoras
Presta os teus ais,
Vento que choras
Nos pinheirais.


Verdadeiramente

Verdadeiramente
Nada em mim sinto.
Há uma desolação
Em quanto eu sinto.
Se vivo, parece que minto.
Não sei do coração

Outrora, outrora
Fui feliz, embora
Só hoje saiba que o fui.
E este que fui e sou,
Margens, tudo passou
Porque flui.
6-4-1934


Vivem em nós inúmeros

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.
Ricardo Reis (Fernando Pessoa)


Vou com um passo como de ir parar


Vou com um passo como de ir parar
Pela rua vazia
Nem sinto como um mal ou mal-'star
A vaga chuva fria...
Vou pela noite da indistinta rua
Alheio a andar e a ser
E a chuva leve em minha face nua
Orvalha de esquecer ...

Sim, tudo esqueço.Pela noite sou
Noite também
E vagaroso eu ...] vou,
Fantasma de magia.

No vácuo que se forma de eu ser eu
E da noite ser triste
Meu ser existe sem que seja meu
E anônimo persiste ...

Qual é o instinto que fica esquecido
Entre o passeio e a rua?
Vou sob a chuva, amargo e diluído
E tenho a face nua.

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