quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A Salvo de Si Mesmo


A história começa assim: Em 2007 recebi um telefonema no meio da tarde, por volta das 16hrs, aproximadamente. O tempo estava nublado, me lembro bem, e parecia eminente a chegada de um temporal daqueles. A cada 20 segundos escutava-se o estampido dos trovões, logo após o cintilante relampear dos raios. Um terrível espetáculo!

Não dava para escutar quase nada no celular. A ligação estava ruim. Mesmo assim uma voz de mulher, em tom desesperado pedia pelo amor de Deus para ser atendida, ainda naquela tarde.

Eu dizia a ela no telefone: “Não vem para cá agora não, pois o céu vai desabar...” eu queria ir para casa e também protegê-la da situação de risco: chuva, raios, possíveis inundações; mas ela insistiu muito e, então, aceitei receber a jovem que chegou duas horas e meia mais tarde.

Perguntei: “Em que posso ajudá-la? O que houve de tão urgente? Que situação te trouxe até aqui?”

Ela respondeu mais ou menos assim (que eu me recordo): “Estou inundada em dívidas; terminei um relacionamento de seis anos com meu namorado que tanto amo; briguei com meu pai, meu maior amigo; quebrei algumas coisas em casa, meu lugar de conforto; não sei mais o que faço, pois tenho destruído tudo o que sempre amei e sonhei para mim... Eu quis fazer o meu melhor e acabei estragando tudo”.

Enquanto ela falava me veio à mente uma frase de Freud: “Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons”. Mas ainda não era hora para dizer isto... Permaneci em escuta.

Ela tremia e, como medida emergencial, ofereci um copo com água. Fizemos um exercício de respiração (7.3.7) por alguns segundos. Depois reclinei a moça no sofá, pedi a ela que tirasse sua sandália. Com voz suave, tentei estabilizar sua ansiedade e nervosismo. Passado uns 20 minutos, aproximadamente, lá estava ela, com seu primeiro sorriso. Chegou uma fera e recobrou sua condição de bela. Se sentindo mais calma e em condições de conversar sobre o que houve, continuei a escuta compassiva por mais uma hora e depois por mais três sessões até que ela mesma se deu alta e nunca mais voltou ao meu escritório.

Adivinha quem eu encontrei dois anos depois, tomando um sorvete no shopping? Exatamente! Ela mesma! Cumprimentou-me sorrindo, toda sem graça, parecendo querer dar uma satisfação do que houve e acabou dizendo que havia viajado para esfriar a cabeça, conheceu outro rapaz, brigou de novo, saiu da igreja, bateu o carro. Pegou um empréstimo para quitar as dívidas antigas e agora deve ao banco e ao comércio, tudo de novo, em dobro.

Ela estava acabada, desfalecida e pálida. Envelheceu cinco anos em apenas dois. Trazia no rosto uma olheira de fazer inveja a qualquer urso panda. Sussurrou que só dorme sob efeito de remédio. Depois de mais quinze minutos de uma melancólica verborragia desconexa, me despedi dela com uma espécie de confrontação.

Não havia tempo para eu pontuar e interpretar suas demandas, isto eu iria fazer no tempo e local adequado. Foi então que, confrontando-a, eu disse: “Fulana, eu estava preocupado em mantê-la à salvo da chuva, dos raios, dos credores, de seus algozes reais e imaginários, até que você tivesse condições de fazer isto por si mesma. Mas, na verdade, você precisa de algo ou alguém que ajude você a mantê-la à salvo de si mesma.

Perguntei: “De onde surgiu tanto descaso consigo mesma? Quando começou a se odiar tanto para fazer exatamente o contrário de tudo que sonhou e almejou para si? Porque judia tanto de ti?”. Ela apenas maneou a cabeça e balançou os ombros como quem diz em reflexivo silêncio: Sei lá!

Seguimos cada um o seu itinerário e espero que ela busque as respostas das perguntas que deixei no ar. Espero que ela consiga fechar a gestalt que abri propositadamente, pois somente quando ela encontrar aquelas respostas poderá dissipar as idéias inconscientes que a faz agir irresponsavelmente contra si mesma.

Não é fácil para qualquer pessoa controlar as demandas de seus ancestrais que, geneticamente, estão dentro de cada um. O sangue beduíno pede comportamento nômade. O sangue português e espanhol pede comportamento de desbravador. Os apelos genéticos, a influência do ambiente, as demandas inconscientes ao longo do desenvolvimento são fontes naturais e inesgotáveis de conflitos internos. Conflitos estes que podem se transformar em neuroses, quando não elaborados no tempo certo.

Toda pessoa precisa de um ego bem estruturado, razoavelmente maduro e consciente para poder mediar com destreza os conflitos advindos das clássicas neuroses: Ex.: Quem a pessoa é e quem ela gostaria de ser. O que a pessoa tem e o que ela gostaria de ter. Para você isto pode não representar nada, mas há pessoas que sucumbem quando entram em um ciclo de indagações aparentemente sem respostas, sem soluções imediatas.

Em verdade, não somos apenas o que pensamos ser, mas o que lembramos e o que esquecemos que somos. Somos os nossos enganos, os nossos erros e acertos. Somos as nossas palavras. Somos o pior e o melhor que pensamos ser. Somos tudo isto e somos também as ações que fazemos sem querer fazer.

Por estas e outras razões que a terapia se faz pertinente também no processo de autoproteção do indivíduo; onde o terapeuta faz o papel de ego auxiliar e assim desvela a sorrateira criança (id) que há dentro de cada um; ameniza o exagero no rigor da figura de autoridade interiorizada (Superego) e propicia espaço de crescimento, referências mais consistentes e, consequentemente, amadurecimento do ego, que em breve, muito em breve estará apto e em condições de manter a pessoa a salvo de si mesma. Naquele dia ela ainda não estava!

Quem nunca fez terapia, experimente! Quem já fez e abandonou, volte! Quem está fazendo, continue firme e mantenha-se a salvo de si mesmo até que receba alta!

Prof. Chafic Jbeili
Psicanalista e Psicopedagogo

Texto recebido por e-mail da amiga Celia Cardoso

Nenhum comentário: