terça-feira, 26 de agosto de 2008

FERNANDO PESSOA de E a F

É brando o dia, brando o vento

É brando o dia, brando o vento
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento !
Assim fosse eu, assim fosse eu !
Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim ser eu assim !

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto !


Em outro mundo, onde a vontade é lei

Em outro mundo, onde a vontade é lei,
Livremente escolhi aquela vida
Com que primeiro neste mundo entrei.
Livre, a ela fiquei preso e eu a paguei
Com o preço das vidas subseqüentes
De que ela é a causa, o deus; e esses entes,
Por ser quem fui, serão o que serei.
Por que pesa em meu corpo e minha mente
Esta miséria de sofrer ? Não foi
Minha a culpa e a razão do que me dói.

Não tenho hoje memória, neste sonho
Que sou de mim, de quanto quis ser eu.
Nada de nada surge do medonho
Abismo de quem sou em Deus, do meu
Ser anterior a mim, a me dizer

Quem sou, esse que fui quando no céu,
Ou o que chamam céu, pude querer.

Sou entre mim e mim o intervalo _
Eu, o que uso esta forma definida
De onde para outra ulterior resvalo,
Em outro mundo

Era isso mesmo

ERA ISSO mesmo -
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...
Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...

Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não - nem mudarei...

Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.

Fresta

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

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